Como as alterações na privacidade da Apple podem atingir todo o mercado de marketing digital do Brasil
Nos últimos anos, o marketing digital se tornou preponderante para a geração de receita pelas empresas que dele se utilizam para divulgar seus produtos e serviços. Ele passou a ser mais assertivo, para alcançar pessoas especificamente interessadas nos bens ou serviços oferecidos pelo anunciante.
E como isso acontece? Como se sabe as preferências e desejos de cada uma das pessoas alcançadas por esses anúncios?
O marketing digital é hoje promovido por leilões em tempo real para seleção dos anúncios que serão exibidos para cada pessoa especificamente considerada.[1] O chamado real-time bidding (RTB) ganhou força, porque permite que os donos de inventário (publishers) vendam seus espaços, expondo os perfis e contextos dos usuários associados, para anunciantes neles interessados. Os anunciantes, por outro lado, se beneficiam, porque podem ter acesso a mais de um dono de inventário e, dessa forma, obter a melhor correspondência entre os usuários e seu anúncio.
Como se vê, a assertividade dos anúncios aumentou enormemente nos últimos anos e, com isso, a receita gerada para os anunciantes em decorrência deles também. Isso significa que as empresas podem atribuir exatamente quanto despenderam com essa despesa de marketing para que a receita fosse gerada por um usuário especificamente considerado. Desse modo, há atribuição da despesa à receita gerada.
O Facebook atua como dono de inventário, vendendo os espaços dentro de suas plataformas (Facebook, Whatsapp e Instragram) para que anúncios sejam nela veiculados. Além disso, ele faz a gestão dos espaços de plataformas de terceiros. Nessas operações, é necessário que exponha o perfil e contexto de seus usuários para que os anúncios exibidos para um deles, especificamente considerado, reflitam suas preferências, desejos e interesses. Quanto maior a assertividade do anúncio, maior a probabilidade de ele gerar receita para o anunciante.
Mas como o Facebook obtém esses dados? Ele se utiliza de uma ferramenta chamada Identifier for Advertiser (IDFA). Por meio dela, o Facebook obtém as informações sobre preferências e contextos dos usuários.
A Apple atualizou sua política de privacidade e anunciou que pedirá explicitamente aos usuários que “optem” (opt in) por esse tipo de rastreamento de suas informações. Antes, eles deveriam escolher “desistir” (opt out) nas configurações, porque a opção era automática[2].
A primeira expressão (opt in) tende a gerar um obstáculo para obtenção dessas preferências e informações dos usuários, uma vez que a maior parte deles tenderá a não clicar em opt in, não dando assim seu consentimento para a utilização desses dados por meio do IDFA.
A Apple entende que fornecer o IDFA depende de permissão expressa do usuário por se tratar de informação privada. Por outro lado, o Facebook entende que o IDFA seria como a placa de um carro apenas.
De fato, se isoladamente consideradas as placas de vários carros, não há nelas informações privadas que, se concedidas, violariam direitos fundamentais daqueles que detém o veículo. No entanto, se essas placas forem usadas para identificar por onde esse carro passou, haveria violação à privacidade do dono do veículo.
Dentro da política de privacidade da Apple, há a vedação ao chamado finger printing, ou seja, ao mapeamento de por onde esse carro passou e essa é a razão dessa alteração anunciada pela Apple.
Essa modificação torna, sem dúvidas, a tarefa de coleta de dados relativos a essas preferências e contextos dos usuários, para que a eles sejam exibidos anúncios, muito mais árdua. Num primeiro momento, o Facebook anunciou que não utilizará o IDFA dos usuários Apple a partir da implementação dessa atualização, mas isso poderá ser revisto posteriormente com o detalhamento da política de privacidade da Apple que ainda será divulgada[3]. Isso impacta sobremaneira o mercado de publicidade digital, não sendo ainda possível precisar o tamanho desse impacto e como ele reagirá a essa modificação.
Por enquanto, o que se sabe é que o Facebook conseguirá medir essas preferências e contextos de usuários dentro de suas plataformas por ter o controle interno dessas informações. Mas isso não se aplica à gestão de espaços em plataformas de terceiros. Pode ser que esse modelo de negócio termine em função dessa alteração promovida pela Apple, uma vez que sem o IDFA não é possível precisar os anúncios veiculados aos usuários, segundo seus interesses.[4]
Essa questão caminha lado a lado com a discussão sobre a necessidade de proteção de dados e em que medida isso deve ser feito. O mundo inteiro tem editado normas que determinam, entre outros, a solicitação de autorização expressa do usuário para que suas preferências e contexto sejam utilizados em conjunto com os de outros usuários semelhantes para, por exemplo, determinar o tipo de anúncio que será a eles exibido.
No Brasil, foi editada a Lei 13.709/2018 – Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) –, objetivando harmonizar a legislação e o entendimento dos tribunais sobre as práticas de uso e compartilhamento de dados pessoais de brasileiros ou que tenham sido obtidos ou utilizados no país.
Com base essencialmente nos princípios da finalidade, adequação, necessidade e transparência, ela busca impedir o acúmulo de dados pessoais por instituições públicas e privadas que não tenham o que fazer especificamente com isso. Ela busca a obtenção apenas e tão somente dos dados pessoais considerados imprescindíveis para a relação jurídica estabelecida.
A LGPD define quatro agentes: (i) titular, pessoa física a quem os dados pessoais se referem; (ii) controlador, que é a empresa ou pessoa física que coleta os dados pessoais e define a finalidade e forma do tratamento desses dados; (iii) operador, pessoa física que realiza o tratamento e processamento dos dados pessoais conforme determinado pelo controlador; e (iv) encarregado, pessoa física que atua como canal de comunicação entre o controlador, o titular e as autoridades nacionais.
Ela impõe limites para o tratamento de dados, que demandará o consentimento dos usuários, além de o legítimo interesse do controlador que somente poderá usar esses dados para finalidades consideradas legítimas, considerando as situações concretas.
O intuito não é eliminar a utilização de dados pelo marketing digital, mas que se busque trabalhar com grupos menores de dados, provenientes de interações mais significativas e transparentes. Além disso, estimula o engajamento do usuário que ao permitir a utilização de seus dados, está agindo conscientemente, ou seja, participando ativamente desse processo ao invés de ser apenas uma fonte passiva de dados.
A LGPD entraria em vigor 24 meses após a sua publicação. No entanto, em razão da pandemia, o Governo Federal apresentou a Medida Provisória 959/2020, que prorrogava a vigência da LGPD até 31 de dezembro de 2020.
Contudo, em 26 de agosto de 2020, o Senado Federal decidiu que essa matéria já teria sido por eles enfrentada e o artigo que trazia essa previsão foi derrubado. O texto foi sancionado pelo presidente da República em 17 de setembro de 2020. Entretanto, por força da Lei 14.010/2020, a aplicação das penalidades por descumprimento do que a LGPD determina somente entram em vigor em agosto de 2021.
Ao entrar em vigor no país, Facebook terá que se preocupar também com as medidas impostas pela LGPD que alcança amplamente usuários de suas plataformas situados no Brasil e que sejam brasileiros. Será que a substituição do IDFA e a utilização dos dados gerados dentro de suas plataformas representa algum tipo de afronta ao que determina a lei brasileira?
Provavelmente veremos, nas próximas semanas, algumas alterações na política de privacidade da empresa para também se adaptar à LGPD e, nos próximos anos, como a jurisprudência definirá expressões de tão largo alcance contidas na lei, como adequação e transparência.
O Sem Precedentes desta semana analisa o voto antecipado do ministro Marco Aurélio Mello, do STF, que reconhece a possibilidade de o presidente Jair Bolsonaro prestar depoimento por escrito à Polícia Federal no âmbito do inquérito que apura possível interferência do presidente na PF. Ouça:
[1] Segundo Jun Wang, Weinan Zhang e Shuai Yuan (Display advertising with real-time bidding (RTB) and behavioural targeting. Boston: Now Publishers Inc, 2017, p. 4.): “Unlike traditional ad networks, these ad exchanges aggregate multiple ad networks together to balance the demand and supply in marketplaces and use auctions to sell an ad impression in real time when it is generated by a user visit”.
[2] Essa modificação passaria a gerar efeitos a partir do iOS 14. Contudo, dias antes do lançamento dessa atualização, a Apple postergou os efeitos dessa alteração que poderá trazer enorme impacto no mercado de marketing digital.
[3] Vale notar que dentro do Facebook, já existia a ferramenta de controle de anúncios, permitindo que o usuário da plataforma verifique por que um anúncio foi mostrado e permitindo o cancelamento da exibição de anúncios específicos. Essas informações estão disponíveis em: <https://www.facebook.com/privacy/explanation>. Acesso em: 27 de agosto de 2020.
[4] Aqui, não buscamos debater outras questões envolvidas, visto que a Apple pode, inclusive, entender que a utilização de dados promovida pelo Facebook dentro de suas plataformas (Facebook, Whatsapp e Instagram) para obtenção dessas informações de preferências e contexto dos usuários afronta a sua política de privacidade, podendo inclusive retirá-lo da App Store. Além disso, emerge a questão concorrencial, tendo em vista que a Apple também faz a gestão de inventários de terceiros para exibição de publicidade e ao impedir o Facebook que o fizesse, tomaria possivelmente a maior fatia desse mercado.
JACQUELINE MAYER DA COSTA UDE BRAZ – Doutoranda e mestre em Direito Tributário pela USP. Pós-graduada em Direito Tributário pelo IBET e pela FGV. Coordenadora do Grupo de Estudos Tributação e Novos Modelos de Negócio do IBET. Professora e advogada.
Fonte: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/apple-vs-facebook-e-a-lgpd-brasileira-28092020
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